AS MIGALHAS E O PÃO
Uma mulher cananéia suplicou a Jesus pela sua filhinha atormentada pelo demônio (Mt 15,21-28; Mc 7,24-30). Recebeu, porém, um tratamento que quase nos escandaliza. Primeiro, Jesus não lhe respondeu, depois explicou-lhe que tinha sido enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel e, por fim, chegou ao cúmulo de dizer que “não fica bem tirar o pão dos filhos para jogá-lo aos cachorrinhos”.
A ajuda para interpretar esse texto do Evangelho veio de minha mãe. Assisti a uma briga de meus dois irmãos mais novos que se queixavam um do outro porque achavam que minha mãe privilegiava o outro no amor. Minha mãe, ao perceber isso, impôs severamente o fim da polêmica. Não parou por aí: mandou que os dois fossem comprar pão. Assim que retornaram da padaria, ela cortou algumas fatias e ofereceu-as a meu irmão caçula: “pegue a fatia mais gostosa”. Não conseguiu escolher. A mãe então ofereceu o prato ao maiorzinho: “pegue a fatia mais gostosa”. Esperto, respondeu: “Mãe, como escolher? O pão é o mesmo!” Por fim, a lição para nós: “Vocês entendem agora? Como as fatias são o mesmo pão, assim o amor da mãe: é diferente para cada um de vocês, mas é sempre o mesmo amor”.
A Cananéia respondeu a Jesus: “é verdade, Senhor; mas os cachorrinhos também comem as migalhas que caem da mesa de seus donos”. Em outras. As migalhas também são pão. Aquela mãe aceitou humildemente o papel de “cachorrinho”, mas devolveu o argumento de modo a vencer a lógica excludente com uma diferente: umas migalhas da mesa são também pão.
A fé daquela Mãe cananéia nos ensina que nós não temos direito à graça de Deus e que só a fé dá acesso ao pão dos filhos. Esse episódio mostra os limites da missão histórica de Jesus e sobretudo a sua superação. A Mãe cananéia é a antecipação profética da superação desses limites históricos, pois a sua fé abateu as fronteiras que opunham cães e filhos. Nas palavras de Jesus, o pão são os bens próprios do povo de Israel prometidos por Deus. Com o milagre da cura da filha da Cananéia, a precedência do povo eleito não é negada nem retirada, mas dela participam todos os que, como a Cananéia, pedem com fé.
Temos que reconhecer que, no plano da salvação, primeiro vêm os direitos e as necessidades do povo eleito. Com esse tocante episódio, reconhecemos, por outro lado, que a fé da Mãe pagã e a bondade de Jesus superam qualquer privilégio.
As mães sabem por experiência que o amor tem esta natureza: é sempre o mesmo, ainda que se diversifique pessoalmente. Ainda que multiplicado para vários filhos não deixa de ser um só o amor da mãe. Nesse sentido, a mãe nos introduz no mistério do amor de Deus: Ele não pode nem sabe amar a não ser infinitamente e a cada um de nós dedica um amor personalíssimo que permanece sempre o mesmo.
A Arquidiocese de Sorocaba quer prestar homenagem à Mãe cananéia. Dela aprendeu que a conversão pastoral inclui necessariamente o movimento missionário da Igreja em direção das periferias humanas e sociais. Nelas a Cananéia de hoje clama por socorro. Mais ainda: a Mãe cananéia nos mostra que o abismo que há entre cachorrinhos e filhos é superado pelo Pão que alimenta tanto uns quanto os outros.
A pastoral em nossa Arquidiocese é marcada pelo movimento permanente de ir ao encontro da Mãe cananéia para escutá-la e por ela deixar se converter. As migalhas, com as quais a Cananéia se contenta, são um protesto e, ao mesmo tempo, uma profecia. Protesto porque aos pobres não se devem reservar somente as migalhas e porque as migalhas revelam a existência de barreiras que separam os filhos dos cachorrinhos. Profecia porque, no fim das contas, as migalhas são também “Pão que desceu do céu para dar a Vida ao mundo”, porque é o pão que nos torna todos comensais da mesma mesa e dos mesmos dons. Para que a migalha não humilhe o outro, “devo não apenas dar-lhe qualquer coisa minha, mas dar-lhe a mim mesmo, devo estar presente no dom como pessoa” (DCE, 34).
Supliquemos ao Senhor que nos ajude a ouvir os clamores que vêm da Cananéia de hoje. Ela nos faz ver que somos alimentados pelo mesmo Pão de Vida, que as migalhas são preciosas, mas não devem permanecer migalhas, e que, mesmo que deixem de ser migalhas, não deixam de ser o pão que desce dos céus.
Caro leitor, querida leitora, neste dia das mães, tão diverso de todos os que já festejamos, homenageemos nossas mães reconhecendo o que aprendemos através do amor delas. Mesmo que falecida ou ausente, prestemos nossa homenagem dizendo o que o amor delas mudou em nossas vidas. Ouso até mesmo pensar que Jesus quis homenagear a sua mãe, Maria, aceitando aprender daquela Mãe cananéia.
Para que a pandemia
Sempre nos perguntamos sobre os motivos dos acontecimentos, ainda mais quando eles nos fazem sofrer. Buscamos as causas da pandemia e da crise econômica que se abate com mais força sobre os mais pobres. Procuramos saber de quem é a responsabilidade. Quais precauções não foram tomadas e a quem devemos culpar? Os porquês podem também chegar até Deus. Por que Ele permite todo esse sofrimento? Por que Ele não faz nada? Por que Ele demora? Por que não exerce a sua onipotência para vir em nosso socorro?
Mesmo que devamos buscar as causas, gostaria de propor aos leitores desta coluna uma outra pergunta. Sem esquecer o porquê, antes o integrando, reflitamos sobre o para quê. Qual é a finalidade de tudo isso? A atual desolação da pandemia ensina algo para mim e para a Igreja?
Durante este tempo de distanciamento social, muitas pessoas têm partilhado comigo experiências que gostaria de sintetizar nesse para quê. A primeira lição vem das igrejas vazias. Olhamos para as nossas igrejas vazias e uma sensação terrível nos apavora: parece um sinal premonitório de uma debandada geral. As pessoas deixaram de buscar Deus, e as igrejas mais parecem um túmulo do que uma casa! Deus não é mais necessário e a Igreja deixou de ser algo essencial para as pessoas. Mesmo sabendo que muitos têm verdadeira sede e fome de Deus, o sinal das igrejas vazias nos aponta para a necessidade de uma conversão missionária. Se o vazio das igrejas for, de fato, ouvido como uma advertência para a nossa conversão, esse vazio poderá se transformar também em sinal da ressurreição: “Eis que estarei convosco todos os dias até o fim”.
Lição importante é a graça de cuidar das pessoas. Uma fiel partilhou na rede social que, durante este tempo, tem feito ‘viagens maravilhosas’: todos os dias descobre algo diferente no marido e nos filhos, explora as riquezas insondáveis da Bíblia e da oração, percorre páginas de livros há tempos comprados e esquecidos na estante, redescobre a própria habitação ao fazer a faxina. E o que dizer de tantos gestos de delicadeza e de solidariedade cotidiana, pequenos e anônimos? Um grupo de pessoas arrecada cestas básicas. Outra pessoa, que tinha comprado uma centena de máscaras a caro preço, não hesitou em doá-las aos socorristas do Samu que trabalhavam sem elas. Um Seminário recebeu como novos hóspedes pessoas em situação de rua: dessa forma, o Seminário continua o seu trabalho de formação.
Esses e muitos outros gestos de cuidado para com as pessoas, em tempos de pandemia ou não, demonstram que a maior riqueza deste País são os brasileiros. Devemos nos lembrar, neste tempo de crise econômica, que a maior riqueza de Sorocaba são os sorocabanos.
Outra lição de fé veio de um irmão que tem descoberto como devemos levar a sério a palavra de Jesus: “Onde estão dois ou três reunidos no meu nome, aí estou Eu no meio deles”. Estando privado da missa com povo, ele me confidenciou que tem experimentado a presença de Cristo na Escritura e nos irmãos. Lembrei-me de doutrina tradicional da Igreja: Cristo está realmente presente na Eucaristia, mas essa presença não é dita real por exclusão mas por excelência. Cristo está realmente presente na comunidade reunida, quando se proclamam as Escrituras, e Ele se identifica realmente com os pobres. A presença de Cristo não é algo simbólico. O fato de estarmos vivendo sem assembleia litúrgica, sem a presença de povo nas igrejas, sem celebrações comunitárias, é uma ocasião preciosa para estar em comunhão com Cristo através de outras formas. Elas não são formas alternativas. São formas de presença real de Cristo.
Outra lição de Teologia recebi de um fiel que me confidenciou que tem compreendido mais profundamente o que é a ‘comunhão dos santos’. A comunhão não é algo privado e, se ela é dada a um só fiel, isso não constitui um privilégio excludente. Dar e receber a comunhão não é um delivery de pizza: só se beneficia quem come. Não! A Eucaristia recebida, mesmo que por um só, se reverte em benefício para todo o corpo eclesial feito Corpo de Cristo pela mesma Eucaristia.
Por fim, a lição mais importante se refere ao socorro de Deus. Deus não poupou Jesus das trevas da agonia e da solidão do abandono na Cruz. A noite escura da ausência de Deus é o modo misterioso de Sua presença. É exatamente no momento em que parece que Deus não se apressa em nos socorrer que Ele já está lá. Está presente sem que o tenhamos invocado. Nossos olhos não percebem a sua presença, da mesma forma como Maria Madalena não reconheceu Jesus junto ao sepulcro, como os discípulos de Emaús não viram que aquele peregrino que lhes explicava as Escrituras era o Senhor, como os antigos pescadores convertidos em apóstolos não reconheceram no comprador de peixes o Ressuscitado. No nosso sofrimento, Ele está presente, antes mesmo que verbalizemos alguma prece. E se nós olharmos para além de nosso sofrimento? Nós O encontraremos realmente presente nos médicos, enfermeiros e agentes de Saúde, nos enfermos, nos trabalhadores essenciais. Antes mesmo que pensemos em Deus, antes de qualquer oração nossa, Ele já se encontra presente.
Caro leitor, querida leitora, para que a pandemia? Encontre você também as lições que ela pode dar! – Dom Julio Endi Akamine, SAC, é arcebispo metropolitano de Sorocaba.
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